26.3.12

sensibilizar


Hoje em dia eu não me sinto mais facilmente sensibilizada pelas coisas do mundo. Não consigo escrever mais sobre dedos pequenos que tocam um universo de amor, úteros aquecidos pela energia da paixão, sobre os cílios que piscam vagarosamente ao ver um pôr do sol dar adeus ao céu deixando um abraço laranja avermelhado. Não me comovo mais com as crianças que morrem de fome, pela magreza do cérebro humano ao pensar que investir em homens à lua é mais eficaz do que dar educação e lar. É uma pena, eu também acho, mas é o que buscamos, é o que achamos. Não me sensibilizo mais com o câncer, com a anorexia, com a estupidez de achar que qualquer coisa pode se destruir, que qualquer coisa pode se fazer e desfazer num simples segundo de tempo. No mundo há raízes, tão profundas quanto a ignorância humana de achar que tudo o que sabemos e somos não é pura persuasão de uma massa gigantesca de reis na pirâmide do abismo. Não me comovo mais nem sequer com a morte. Porque afinal, talvez ela seja apenas uma chance que estamos tendo de poder nascer de novo, se tornar bebê, se tornar mais uma vez puros, e mais e mais uma vez, ter a oportunidade de ser alguém diferente dessa massa de bolo de leite, sem sal, sem doce. Tristemente, ainda quando reencarnamos, escolhemos continuar cheios de frustrações de outras vidas, de medos, de angústias. “No mundo há escuridão e há luz”. Há escolhas.

 Um dia quando eu estava andando pela rua eu encontrei um gato branco e preto tossindo sem parar, eu cheguei o máximo que possível perto dele e pude olhar fixamente para sua agonia em não conseguir respirar, quando ao mesmo tempo ele olhava fixamente para os meus olhos com medo. Eu não podia fazer nada senão olhar. E ele não podia fazer nada além de revidar e continuar tentando vomitar uma bola gigantesca de pelo que estava presa em seu estômago, na tentativa de sobreviver. Mais uma vez me tornei inútil numa situação banal de um mundo cheio de situações banais e cheio de seres humanos inúteis. Não podia sequer me comover, porque sequer mexi meu pé para frente. Devastada pela inutilidade.

Outro dia, consciente de toda a falta de sensibilidade diante tudo que estava encostado aos meus pés, eu descobri uma lágrima gritando para que pudesse cair no meu rosto, motivada por algo simples e rotineiro. Minha prima estava chegando de outro país e toda a família a esperava alegremente. Vê-la abraçar os pais, os primos, os tios e a mim foi como me deixar completamente sem ar. Era uma sensação estranha. Uma vontade agoniante de chorar, de gritar, de correr, de abraçar. E não era o fato de ela estar de volta, apesar do amor que sinto, mas sim pela sensação de ver a comoção das pessoas pelo reencontro. Como se agora a única coisa que pudesse me fazer sentir pura fosse a sensação que encontrar e partir dá. Partindo para encontrar. Como se meu âmago pedisse sempre por um encontro - e isso fosse algo que me deixasse sensível - talvez impossível enquanto eu estiver ainda nesse mundo; ou estivesse pedindo ardentemente por uma fuga e, em seguida, outro reencontro. Imagine quantas luzes acendem cada vez que as pessoas se tocam como se nunca mais fossem se vir outra vez ou como se pudessem guarda-las entre o pulmão e o fígado.

Queria eu poder viver dessa pureza de partir e chegar como se o coração fosse um passarinho sempre a voar. Apenas partindo e chegando, partindo e chegando. E levando consigo o melhor que há de abraços e beijos. Dessa forma, viver de sensibilizar.

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